sexta-feira, 19 de junho de 2020

CELEBRAR JOSÉ SARAMAGO

A 18 de junho passaram 10 anos sobre a morte de José Saramago, Portugal ficou mais pobre perdendo um dos maiores símbolos da literatura moderna.


 José Saramago nasceu a 16 de novembro de 1922, na aldeia de Azinhaga, no Ribatejo. O apelido Saramago não era do pai e passou a ser do filho. Nome de planta herbácea espontânea — Raphanus raphanistrum —, saramago era “alimento na cozinha dos pobres” e alcunha da família na aldeia. Por isso, aquele que teve como nome completo José de Sousa Saramago era para ter apenas um apelido. E a revelação só surgiu na escola primária, conta numa autobiografia. “Só aos sete anos, quando tive de apresentar na escola primária um documento de identificação, é que se veio a saber que o meu nome completo era José de Sousa Saramago…”. 
Filho e neto de camponeses, Saramago deixou a aldeia aos dois anos para se deslocar para a capital com os pais, embora lá voltasse várias vezes e em períodos consideráveis até à idade adulta. Por isso, a Azinhaga fazia parte dele. Era ali que estavam os avós, filhos da terra e que a terra lhe dão a conhecer. Por isso, aquando a entrega do Nobel, em 1998, são eles que começam por ser recordados no seu discurso
A família, sem recursos económicos, vivia em quartos, partes de casa e águas furtadas em Lisboa. Por isso, o jovem Saramago não pôde prosseguir os seus estudos além do ensino secundário: empregou-se como aprendiz de serralheiro mecânico nas oficinas dos Hospitais Civis, onde foi também desenhador e funcionário administrativo.
Aquele que pode ser visto como o homem dos sete ofícios que depois se torna escritor não tinha livros em casa. Em 1991, numa entrevista a um jornal de Lisboa, conta que leu os primeiros livros em criança — estando doente e de cama, a mãe percorreu as casas do bairro a pedir livros emprestados. Em adolescente, procurou-os ele: começou a frequentar bibliotecas e, assim, foram “centenas de livros” devorados, “sem nenhuma orientação”. Seus, mas escritos por outros e comprados com dinheiro emprestado por um amigo, só os viu aos 19 anos.

Todavia, pela vida fora as letras foram-se desenhando à sua frente. Quem começa a ler não mais consegue parar enquanto a saúde ajuda, quem começa a escrever há-de fazê-lo também até ao fim da vida, e Saramago não tinha outra ambição além dessa —embora admitisse que “deixar de escrever é inevitável” e não “um drama”. Por isso encarou sempre tudo com naturalidade. “Não posso escrever? Bem, é pena. Mas posso viver? Sim? Então, vou viver".
Foi, no entanto, um acaso do destino que o fez mudar de rota. Depois de ter passado pela indústria cerâmica e por uma companhia de seguros, onde permaneceu 10 anos, José Saramago foi convidado para o lugar de editor literário dos Estúdios Cor. Em 1969 torna-se militante do Partido Comunista Português e dois anos depois demite-se dos Estúdios Cor e ingressa no Diário de Lisboa, como jornalista. Mais tarde, chega ao Diário de Notícias como diretor-adjunto, cargo que desempenhou entre Abril e Novembro de 1975, no calor da revolução. Os seus escritos no DN marcaram o jornal e puseram-no sob fogo. Pelo meio colaborara como crítico literário na Revista Seara Nova.
Era o início do Saramago como hoje o conhecemos. O ano de 1976 marcou a altura em que começou a viver exclusivamente do seu trabalho literário, primeiro como tradutor, depois como autor. Mas os livros que saíam de si já tinham chegado. Em 1947, ano do nascimento da única filha, Violante, Saramago publicou o primeiro livro, um romance a que chamou A Viúva, mas que “por conveniências editoriais" saiu com o nome de Terra do Pecado.
Mas o que agora é percecionado como o início de um percurso não o foi, na altura, para Saramago. “Se eu tivesse essa ideia de uma carreira literária, depois do ano de 1947, em que escrevi o meu primeiro livro, tinha continuado. E, no entanto, estive 20 anos sem escrever, praticamente, e sobretudo sem publicar”, declarou à Lusa quando publicou A Viagem do Elefante, em 2008.
Quando escreveu “o primeiro livro que tem um significado, como é o Manual de Pintura e Caligrafia, em 1977, tinha 55 anos, já uma idade avançada”, sublinhou, o Levantado do Chão, em 1980, tinha 58 anos, e Memorial do Convento, “que realmente abriu muitas portas”, tinha 60 anos.
Até aí, explicou, não houve qualquer “vocação reprimida”. E, por isso, quando retomou trabalho, fê-lo sem parar. A justificação era-lhe simples: “acho que tinha qualquer coisa para dizer e então, desde essas datas até hoje [2008], não parei”, referiu.
Entre livros, José Saramago casou com Pilar del Río em 1988 e em Fevereiro de 1993 decidiu repartir o seu tempo entre a sua residência habitual em Lisboa e a ilha de Lanzarote, no arquipélago das Canárias, em Espanha. 

Saramago é o escritor que incita o leitor a reparar: “É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na Primavera o que se vira no Verão, ver de dia o que se viu de noite, com sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava. É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre”.
A atribuição do Nobel da Literatura surge a 8 de outubro de 1998. Para aquele que dizia não ser pessimista, —“o mundo é que é péssimo" —, receber o Nobel foi uma conquista aceite de forma natural. Afinal, o escritor dizia não ter nascido “para isto”. Mas foi o que lhe deram. Com esta atitude despojada, mostrou a simplicidade e humildade de um homem de porte sisudo e de temperamento reservado. Em entrevistas, chegou a referir que apenas queria ter “saúde e vida longa”, sem no entanto esquecer tudo o que por ele tinha passado, tudo o que aprendera — afinal, nada melhor para moldar alguém do que as vivências.
O homem morre, mas o escritor e os livros não. Por isso, Saramago continua entre nós, pronto a ser descoberto vezes sem conta. 
Adaptado de um artigo do Sapo 24 de 8 outubro 2018

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